A voz do dono e o dono da voz
Foi apenas em 2007, com a apresentação do Projeto de Lei 821/2007, pelo então deputado Clodovil Hernandes 1937-2009, que esse tema ganhou corpo no Congresso Nacional. Após a morte do parlamentar em 2009, a proposta foi transformada na Lei Ordinária 12.091/2009, que modificou a Lei nº 9.610, de 19 de fevereiro de 1998 (Lei de Direitos Autorais), passando a assegurar os direitos morais dos dubladores em obras audiovisuais — sobretudo o direito de receber créditos por seu trabalho. Para se ter uma ideia do atraso nesse reconhecimento, estima-se que apenas em 2011 os dubladores passaram a ser creditados regularmente nos episódios de Chaves, um dos programas mais populares da TV brasileira. Curiosamente, embora os dubladores tenham começado a ser mencionados, os atores mexicanos originais raramente foram creditados nas transmissões do SBT, mesmo quando a emissora adotou — e mantém até hoje — a clássica abertura com a contagem regressiva e os personagens perfilados. Três episódios distintos, ocorridos em três emissoras diferentes — SBT, Globo e Record — ilustram como esse debate ainda é central no mercado audiovisual: trata-se do direito ao reconhecimento e à autoria da voz. No caso do SBT, a discussão culminou em uma decisão judicial.

Bastidores de “Chaves”. Série demorou mais de vinte anos para creditar dubladores (Foto: Arquivo/SiteHT)
Em 2007, os herdeiros de Marcelo Gastaldi Júnior, falecido em 1995 e dublador de Chaves (foto acima), entraram na Justiça contra a emissora. A ação afirmava que “o SBT exibe os episódios que já estavam com a voz do dublador. A família alega que tudo está sendo feito sem autorização e sem pagamento dos direitos autorais. Ainda foi produzido um DVD com alguns episódios do programa, também sem pagamento dos direitos”. A defesa do SBT sustentou que adquiriu os direitos do seriado após a morte de Gastaldi e que, por isso, ele não poderia ser considerado um artista intérprete. Alegou também que, nesse caso, o dublador não teria direito nem aos direitos conexos nem aos autorais. No entanto, em 2011, a Justiça determinou que o SBT deveria indenizar os herdeiros do dublador por uso não autorizado da voz. O advogado Victor Drummond, especialista em direito autoral e propriedade intelectual, e diretor da Interartis — associação de gestão coletiva de atores do audiovisual —, explica o fundamento legal da decisão: “Esse direito não pode ser objeto de cessão ou transferência contratual. A lei diz que são direitos morais do autor — em seu artigo 24 — como direito de paternidade, nomeação, autoria. E o artigo 27 vai dizer que são inalienáveis e irrenunciáveis esses direitos. Então, mesmo que o dublador quisesse, numa cláusula que dissesse que ele precisa ceder o direito de nomeação à autoria, seria nula de plano, portanto, não teria nenhuma validade”. Drummond reforça ainda que o crédito ao dublador deveria ser uma garantia indiscutível, já prevista pela legislação: “O crédito aos dubladores — ainda é uma questão, mas não deveria ser uma questão para o mercado, do ponto de vista da lei, porque o direito de nomeação da autoria também é válido para o intérprete. O dublador é o intérprete em voz. Portanto, não há nenhuma questão aí que impeça que ele seja mencionado — e não deveria haver nenhum impedimento”. Em meio a disputas recorrentes por reconhecimento e autoria no universo da dublagem e da interpretação vocal, há raros casos em que a questão parece ter sido tratada com o devido cuidado. Um exemplo frequentemente citado como positivo é o da novela Tempos Modernos, exibida pela TV Globo em 2010. Nessa trama, o personagem Frank — um supercomputador que interagia com os protagonistas — era interpretado exclusivamente por meio de voz. Coube ao dublador Márcio Seixas dar vida (e voz) ao personagem que não possuía forma física. Diferentemente de outros trabalhos do gênero, Seixas foi creditado com destaque ao longo de toda a exibição da novela. Seu nome constava na abertura oficial, na página do programa no site da emissora e no acervo institucional do Memória Globo.